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terça-feira, 19 de agosto de 2014

O engenheiro oculto


As obras do tatu-canastra mudam a paisagem do Pantanal, mas o mamífero nunca era visto em ação – até ser flagrado por armadilhas fotográficas
    
 
Kevin Schafer
 
Poucos animais escapam aos olhos de um peão pantaneiro. Esteja a pé, a cavalo ou na carroceria de um veículo 4x4, quem cresceu no Pantanal Mato-Grossense e vive na lida do gado está acostumado a focar pequenos movimentos na vegetação e identificar a espécie – antes mesmo de qualquer turista perceber a presença do bicho.

Apesar dessa habilidade, nenhum trabalhador da Fazenda Baía das Pedras, no município de Aquidauana, Mato Grosso do Sul, sabia que na região viviam pelo menos 14 tatus-canastra (Priodontes maximus), todos eles bem ativos. Alguns peões até acreditavam que ele estivesse extinto na região, pois ouviam histórias de caça de seus pais e avós, mas jamais toparam com um desses gigantes de armaduras. Nem mesmo durante as comitivas, quando conduzem o gado para leilão e pernoitam a céu aberto. É algo surpreendente – registros do tatu-canastra no Brasil mencionam espécimes de até 1,5 metro de comprimento, 60 centímetros de altura e 60 quilos. As garras dianteiras, em forma de foice, podem ter 20 centímetros de comprimento.

Apesar do comportamento esquivo da espécie, uma alteração na paisagem sempre intrigou os pantaneiros: os buracos, que surgem por toda parte. Foi preciso que o zoólogo francês Arnaud Desbiez identificasse seus construtores para os peões perceberem como estavam cercados de sinais da presença do grandalhão. Nenhum dos outros tatus é capaz de cavar túneis com 5 metros de extensão e 35 centímetros de diâmetro.

Desde julho de 2010, Arnaud mantém uma rotina trabalhosa de pesquisa em uma área de 20 mil hectares, ao lado dos veterinários brasileiros Danilo Kluyber e Renata Santos e do biólogo Gabriel Massocato, com diversos colaboradores eventuais e apoio da Sociedade Real Zoológica da Escócia e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), do Brasil. Apesar de o tatu-canastra ocorrer em toda a América do Sul e estar classificado como vulnerável na Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês), faltavam informações importantes sobre a espécie. Pouco se sabia, por exemplo, a respeito de seleção e uso de hábitat, tamanho do território, reprodução, se há sobreposição dos espaços ocupados por indivíduos ou qual o parentesco entre os exemplares de cada região.

O âmbito de ocorrência de cada tatu pode variar muito – entre 5 e 35 quilômetros quadrados. A expectativa dos especialistas, ao preencher tais lacunas de conhecimento, é propor um plano de ação para a conservação da espécie a partir de 2015. Por enquanto, a equipe de Arnaud se concentra no monitoramento. Ela precisou desenvolver uma armadilha leve, porém firme, forte e grande o suficiente para pegar o tatu-canastra à saída da toca sem machucá-lo. Também foi necessário inventar um meio de colocar um radiotransmissor na carapaça, pois tatus não têm pescoço para receber uma coleira com rádio.


Quando capturam um tatu, os pesquisadores verificam peso e medidas e coletam amostras de pele, sangue, fungos e parasitas (como carrapatos) para avaliar seu estado de saúde e fazer exames de DNA. Em seguida, o animal recebe o transmissor e é solto. Daí começa o jogo de paciência, muita paciência. Com uma antena na mesma frequência do aparelhinho fixado em cada animal, a equipe de Arnaud passa noites e noites mapeando os movimentos do bicho à base de bips mais fortes ou mais fracos e das coordenadas geográficas fornecidas pelo equipamento, com poucas chances de fazer observações diretas.

Arisco e desconfiado, o tatu-canastra habita de florestas fechadas a campos de Cerrado bem abertos, mas permanece 75% do seu tempo debaixo da terra. Às vezes, passa vários dias sem deixar o buraco. Ou espia só um pouquinho e volta correndo ao farejar algo estranho. De repente, resolve sair para se alimentar, detona um cupinzeiro enorme e muda de toca, andando mais de 6 quilômetros em uma noite só, mais de 20 quilômetros em uma única semana, obrigando os cientistas a varar a vegetação cerrada e recorrer ao GPS para achar o caminho de volta.

A equipe, contudo, conta com a ajuda das armadilhas fotográficas: 15 câmeras de foto e duas de vídeo dotadas de sensores de movimento. Posicionadas em buracos, elas revelam informações preciosas sobre o comportamento do gigante tímido - conseguiram até mesmo flagrar a primeira voltinha ao ar livre de dois filhotes da mesma fêmea. O primeiro nasceu em novembro de 2012, mas não resistiu por muito tempo.

Graças a esses registros, agora se sabe que a gestação dura cinco meses e as primeiras saídas do pequeno desacompanhado só ocorrem com 6 meses de vida, quando sua dieta começa a variar, embora ainda inclua o leite materno. Também é possível ver seu processo de aprendizado - sempre supervisionado de perto pela mãe - na troca de tocas e no reconhecimento de cheiros, um detalhe fundamental para a sobrevivência, pois o olfato é o melhor sentido dos tatus.

As câmeras-armadilhas fazem o impremeditado papel de "paparazzi" da vida selvagem: quando mantidas durante 40 dias no mesmo local, registram usos e usuários das tocas até agora desconhecidos pela ciência. "Estudamos os registros de 60 espécies, flagradas por mais de 4 mil sequências de imagens de nossas câmeras. Pelo menos 24 dessas criaturas - entre aves, répteis e mamíferos - são beneficiadas pelas alterações de hábitat promovidas pelo canastra. Isso nos permite classificar esse tatu como um engenheiro do ecossistema, ou seja, um animal capaz de transformar o ambiente e, com isso, influenciar os hábitos de outras espécies", explica Arnaud Desbiez. "Alguns bichos usam os buracos abandonados pelo tatu como abrigo, outros para descansar durante as horas mais quentes do dia e outros ainda para buscar alimento e caçar presas." Os pesquisadores agora investigam o papel das tocas na disseminação de doenças e parasitas.

No Pantanal, os tatus-canastra fazem três tipos de escavações: abrem cupinzeiros e cavam buracos rasos (até 1 metro de profundidade) para se alimentar, fazem tocas de descanso para usar apenas uma noite (de 1,5 metro) e profundas (de 5 metros) para permanecer por mais dias e ter para onde voltar eventualmente. Um adulto cava, em média, um novo buraco a cada dois dias. A exceção são as fêmeas prenhes ou com filhote pequeno, que ficam mais de 20 dias na mesma toca.

O ambiente preferido para as escavações são os murundus, pequenas porções elevadas de solo arenoso, sobre as quais cresce a vegetação de Cerrado. Os murundus escolhidos para tocas geralmente têm um ou dois cupinzeiros. Os pesquisadores acreditam que o canastra pode alcançar e se alimentar dos cupins vizinhos mesmo quando permanece dentro de sua toca.

Na obra da toca, os tatus removem uma boa quantidade de areia para fora do buraco, criando um ambiente propício, por exemplo, para o "banho" de tamanduás ou para a sesta de famílias inteiras de queixadas e catetos, além das solitárias antas e onças-pardas. Mais: toda a areia revolvida expõe insetos e sementes, atrás dos quais vêm aves, répteis e pequenos mamíferos, que, por sua vez, são presas de cachorros-do-mato, iraras e felinos. Ou seja, o ambiente modificado pelo tatu serve também para a alimentação.

Em seu interior, as tocas são espaçosas e frescas, com a temperatura em torno de 24 oC. Vários outros bichos, de ratinhos a jaguatiricas, buscam esse conforto térmico para escapar do calor ou do frio. Até mesmo outras espécies de tatus - como o galinha, o peba e o rabo-mole - são ocupantes temporários. Para os pesquisadores, esse uso pode servir para a adaptação e a sobrevivência dos diversos inquilinos a eventos extremos, associados às mudanças climáticas.

Uma verdadeira comunidade se movimenta ao redor e dentro dos buracos do tatu-canastra, cada espécie por um motivo diferente e com uma maneira particular de aproveitar o ambiente alterado. Quanto ao engenheiro responsável pela obra, ele segue sua rotina de trabalho noturno, indiferente às melhorias que espalha em seu caminho. Discretamente, como gosta.
No Pantanal, Arnaud Desbiez e Danilo Kluyber soltam um tatu-canastra após pesar, medir e tirar amostras de sangue. Nenhum outro tatu é capaz de cavar túneis de 35 centímetros de diâmetro e até 5 metros de comprimento - antes de sair, o bicho investiga com o olfato apurado.
Apesar da falta de informações atualizadas sobre sua distribuição geográfica, a espécie pode ser encontrada desde a Venezuela até o norte da Argentina, incluindo boa parte do território brasileiro


TERRA DE TATU

As dez espécies brasileiras descendem de um ancestral já extinto, o gliptodonte. Uma maneira de distinguir tatus do mesmo gênero é pelo número de “cintas” no meio da carapaça - o número consta do nome científico de alguns. Entre as espécies atuais, o canastra é o maior tatu do mundo.



OS VISITANTES
Alguns predadores se aproximam da toca do tatu-canastra à procura de presas e são flagrados pela câmera-armadilha. As presas se refugiam atrás de abrigo. Antas, catetos e famílias de queixadas só querem sombra e areia fresca para um cochilo. Aves pousam em busca de comida. Só o dono não está: deixou a toca para os visitantes. Veja as imagens na galeria Os visitantes da toca do tatu-canastra
Fonte: Liana John
National Geographic Brasil
 


 

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